Terminei a última temporada de Você e, sinceramente, a série nunca mais foi a mesma depois da primeira. O começo tinha frescor. Era novidade acompanhar a mente de um psicopata que narrava a própria loucura com justificativas distorcidas. Joe Goldberg criava uma lógica interna para cada ação: espionar, perseguir, matar, manipular — tudo parecia, aos olhos dele, parte de um grande gesto de amor.
O espectador era colocado dentro da mente doentia de Joe, o que gerava um desconforto hipnótico. Era como assistir a um acidente em câmera lenta: sabemos que está errado, mas não conseguimos desviar o olhar. A série brincava com essa ambiguidade moral e levava o público a torcer, por um tempo, por alguém claramente tóxico e criminoso. Essa proposta desconcertante foi o que deu alma à primeira temporada.
Mas o tempo passou, e com ele o impacto. As temporadas seguintes tentaram manter a estrutura, mas giraram em círculos. A trama se repetia, o personagem não evoluía de verdade, e o que antes era intenso virou apenas barulhento. Joe se tornou uma caricatura de si mesmo, preso em arcos cada vez mais absurdos, que buscavam inovar no cenário — Londres, Paris, elites universitárias — mas não aprofundavam o personagem como deveriam.
Na última temporada, a série tenta oferecer um encerramento digno. E em parte consegue. Joe finalmente assume sua persona por completo, sem as máscaras morais que sustentou por tanto tempo. É um desfecho coerente com a jornada dele. Mas ainda assim, fica um incômodo: a série escorrega ao ilustrar, mais uma vez, o fascínio feminino por ele.
Mesmo após todas as atrocidades, Joe continua sendo objeto de admiração e desejo. E aqui a série toca, de forma orgânica, em uma ferida social real: o fetiche perigoso por homens violentos. É um tema que já foi discutido em casos reais, como o do Maníaco do Parque, que recebia cartas de amor na prisão. A romantização do predador não é nova — e Você mostra esse comportamento com sutileza, sem didatismo, mas com acerto.
A personagem Kate, por exemplo, revela essa dinâmica. Mesmo sendo uma mulher forte, articulada e cheia de camadas, ela também se rende ao charme manipulador de Joe. A série consegue mostrar que nem sempre o abuso é físico ou explícito. Muitas vezes, ele se manifesta de maneira intelectual e emocional, escondido sob o verniz da sofisticação.
Outro acerto está na atuação. E aqui é preciso destacar Anna Camp, que interpreta as gêmeas Raegan e Maddie Lockwood. A performance dela é tão precisa que por vezes parece que são duas atrizes diferentes em cena. Ela constrói duas personalidades distintas com naturalidade, explorando sotaques, gestos, modos de falar e reagir. Um dos poucos momentos da temporada que verdadeiramente trazem algo novo à série.
Já Penn Badgley, que sempre foi o esteio da narrativa, mantém sua consistência como Joe. Sua voz interna continua sendo o fio condutor de tudo, mas o material que recebe já não tem o mesmo impacto. A complexidade do personagem foi diluída em justificativas fracas, e o ator faz o possível para manter a densidade. Porém, o desgaste do arco é visível.
A série também acerta ao tocar em temas contemporâneos: misoginia, narcisismo, culto à imagem pública, influência digital e a toxicidade travestida de romantismo. Esses elementos aparecem de forma mais integrada na trama, lembrando o trabalho feito por outras produções que exploraram a mente de predadores com mais rigor, como Mindhunter, The Fall, ou mesmo o filme Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal. A diferença é que Você flerta com a crítica social, mas nunca mergulha completamente nela — o que acaba limitando o impacto que poderia ter tido.
Você termina falando sobre poder, identidade, culpa e a forma como nos vendemos ao mundo. O ciclo de Joe se fecha como deveria, mas não com a força daquilo que um dia foi. Ainda assim, o encerramento convida à reflexão: sobre o tipo de figura que escolhemos amar, sobre os discursos que escolhemos ignorar e sobre o quanto aceitamos por medo de encarar a verdade.
Joe nunca foi um amante, nem um herói incompreendido. Ele foi, desde o início, um predador. E amar esse predador é exatamente o que a série nos obriga a questionar.
Marcio Oliveira 4
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