SHERLOCK | “Elimine o impossível, e o que resta só pode ser a verdade”

SHERLOCK | “Elimine o impossível, e o que resta só pode ser a verdade”



Sobre Sherlock Holmes

Em fins do século XIX, alguns anos antes de Oscar Wilde (1854 – 1910) abalar a literatura inglesa ao levar The Picture of Dorian Gray às livrarias; ali, na mesmíssima Inglaterra, Sir Arthur Conan Doyle (1859 – 1930) apresentou ao mundo uma série de contos em que o protagonista, Sherlock Holmes, um excêntrico detetive amador, possuía extraordinária habilidade de resolver mistérios com métodos dedutivos que facilmente orgulhariam Aristóteles e Descartes.
O romance A Study in Scarlet (Um Estudo em Vermelho - 1888), publicado pela primeira vez no Beeton’s Christmas Annual, em 1887, chamou a atenção do público londrino e rendeu a Doyle, insatisfeito com a medicina, o prestígio e reconhecimento que esperava [e precisava] como escritor. A partir daí, foram 60 contos publicados sobre Holmes até 1928. Dentre as obras mais relevantes estão os romances The Sign of the Four (O Signo dos Quatro - 1890), The Hound of the Baskervilles (O Cão dos Baskervilles - 1902), The Valley of Fear (O Vale do Terror - 1915), e os contos The Adventures of Sherlock Holmes (As Aventuras de Sherlock Holmes - 1892) e His Last Bow (O Último Adeus de Sherlock Holmes - 1917).
Tal qual Alice [in Wonderland] de Lewis Carroll (1832 - 1898), Sherlock Holmes é um dos clássicos da literatura que parecem ganhar vida própria e se lançam ao futuro projetados  por cima de seus criadores. Houve mesmo quem acreditasse que o ‘221B’ da Baker Street realmente abrigava o lendário detetive consultor da Scotland Yard, chegando a receber incontáveis correspondências. A obra é uma fonte da qual beberam e bebem até hoje incontáveis escritores, cineastas, e até mesmo a polícia. Os livros de Conan Doyle chegaram mesmo a ser uma espécie de “manual”, sendo leitura obrigatória para investigadores em algumas partes do mundo. Na Netflix, por exemplo, é possível encontrar diversos filmes e séries certamente inspirados, ainda que indiretamente, na obra de Conan Doyle, dentre estes, podemos listar Sherlock, Elementary, Sherlock Holmes, Sherlock Holmes: A Game of Shadows, Sr. Sherlock Holmes, Brooklyn Nine-Nine, The Black List, Hannibal, etc.

Sherlock, a Série
A série “Sherlock”, lançada em 2010 pela BBC, estrelada por Benedict Cumberbatch (Doctor Strange - 2016) e Martin Freeman (The Hobbit: An Unexpected Journey - 2012), traz os clássicos personagens de Conan Doyle em nova roupagem, transportando o maior detetive de todos os tempos, Sherlock Holmes, e seu fiel companheiro, Dr. John Watson, para o 221B da Londres do século XXI.
Mas o que mais surpreende na produção, não é apenas o deslocamento temporal: a releitura de Steven Moffat (The Adventures of Tintin - 2011) e Mark Gatiss (Game of Thrones) consegue explorar características idiomáticas dos contos originais (MUITO além do extremamente saturado bordão “elementar, meu caro”) e elevar o potencial da trama a níveis espetaculares, rendendo resultados positivos para a série e seu elenco. Isto fica evidente na filmografia posterior de seus protagonistas: Cumberbatch, que chamou atenção dos criadores da série por sua atuação em Atonement (2008), em que contracenou com Keira Knightley(Pirates of the Caribbean: Dead Men Tell No Tales - 2017) e James McAvoy (X-Men: Apocalypse - 2016), explodiu nas telonas da Marvel como Dr. Estranho em 2016; e Freeman (Black Panther - 2018) deu vida ao adorável Bilbo Bolseiro em 2012.
Já no primeiro episódio, o título “Um Estudo em Rosa” deixa claro que veremos um Sherlock elementar, respeitosa e ousadamente enraizado na escola de Doyle, mantendo seus princípios, costumes, vícios e maneiras excêntricas – na medida certa –, porém moderno, que adere ao SMS como ferramenta de comunicação e intromissão, e Watson, que agora publica suas histórias em um Blog que torna Sherlock famoso mesmo odiando o chapéu. Estas são duas grandes sacadas da série, um pouco ignoradas por outras adaptações muito boas, como Elementary (2012), que traz ideias de grande potencial, deforma um pouco Holmes com performances exacerbadas, mas também experimenta boas possibilidades de uma releitura contemporânea, como a transformação de Watson e Moriarty em mulheres, para deixar claro que é possível uma romance (literário) com homem e mulher que não acaba em sexo.
Algumas outras características em Sherlock [a série] são exploradas um pouco além da proposta de Conan Doyle, e, no entanto, sem saturar. Como era de se esperar, a participação de seu principal antagonista, James Moriarty (Andrew Scott), é notável e recebe destaque na série, mas inova ao ganhar um ar de Coringa, desequilibrado entre a genialidade concentrada e clínica de uma personalidade estoica, e o sadismo de um psicopata perturbado. No início, nos dá uma sensação de que foi um erro transformar um vilão conhecido por sua seriedade e compostura em um lunático, mas aos poucos percebemos que harmoniza muito bem com a proposta da série, sobretudo nas cenas do palácio mental de Holmes. 
         Moriarty surge e desaparece quase no mesmo espaço de tempo proposto por Conan Doyle, tendo dois ou três encontros pessoalmente com Sherlock antes de sua morte (não, não é spoiler, todo mundo sabe que ele morre), porém de maneira mais perspicaz, elaborada e cuidadosamente ligada aos demais acontecimentos da trama.
Esse aperfeiçoamento das tramoias do “Napoleão do Crime” foi experimentado diversas vezes em outras adaptações, visto que o próprio Conan Doyle exaltou generosamente, mas investiu poucas linhas nas narrativas do Dr. Watson sobre James Moriarty. Isto se deu devido a pressa de Doyle em dedicar seu tempo aos estudos do espiritismo e o fez, para o desespero dos fãs, matar Sherlock e James na queda de Reichenbach, na Suíça, no conto The Final Problem (1893). Mas acabou mudando de ideia pela pressão pública e Ressuscitou Holmes em The Hound of The Baskervilles, de 1902...
Outro aspecto que contribui para dar ao enredo uma característica de “série”, de fato – apesar de ser a parte que mais me parece beirar a saturação – é a constante interferência de Mycroft Holmes (Mark Gatiss), o irmão mais velho de Sherlock, que nos livros aparece eventualmente, em casos mais extremos, de interesse internacional, mas na série os roteiristas invertem o quadro e inserem Mycroft em 80% dos casos, e aparece já no primeiro episódio (assustando os fãs).
O roteiro traz ainda outras surpresas como pontos fortes, dentre elas: maior destaque para a esposa de John, Mary Watson (Amanda Abbington) – mas não como rival, como fizeram os roteiristas da, também ótima, produção A Game of Shadows, de 2012 , aproveitando o ensejo para colocar em pauta a questão da igualdade de gêneros, do machismo e da misoginia, críticas claras no episódio "A Noiva Abominável" (citação do conto The Five Orange Pips); e uma relação mais próxima entre Holmes e Watson, aproveitando sabiamente boas tiradas sobre a relação dos dois, de maneira inteligente, aberta, moderna, despretensiosa e livre de preconceitos.
Outra grande sacada da série é a dedicação refinada às cenas de imersão na mente de Sherlock Holmes, que nos dá uma visão privilegiada, ainda que hipotética, de como seria estar dentro da cabeça do detetive dos detetives, dando-nos experiências visuais dos raciocínios e dos tormentos de Sherlock. Uma técnica parecida, com paralisação do tempo e medições virtuais dos cálculos e deduções de Holmes, foi experimentada em Sherlock Holmes, de 2009, estrelado por Robert Downey Jr. e Jude Law, e foi uma excelente maneira de envolver e conquistar os fãs, sobretudo os que estão acostumados a fantasiar tais cenas na imaginação, mergulhados nas páginas dos livros. A técnica funcionou e foi aproveitada pelos criadores de Sherlock.
Os efeitos visuais de produção não foram os únicos elementos absorvidos da franquia dirigida por Guy Ritchie(Sherlock Holmes: A Game of Shadows, 2012); a trilha sonora de Hans Zimmer (Batman vs Superman: Dawn of Justice - 2016) para os filmes supracitados também foi bastante representativa para o compositor da trilha desta série, David Arnold (007: Casino Royale – 2006), que traz também uma sonoridade de piano sintetizado, algo entre uma sitar indiana e um cravo, de timbre muito aproximado ao primeiro, como protagonista nas melodias do theme song de Sherlock.
Eu não poderia deixar de mencionar, é claro, Irene Adler (Lara Pulver), “a mulher”, “the woman”, “a imperatrix”, como preferir. Como haveria de ser, Irene recebe o mesmo tratamento dedicado a Moriarty: destaque relevante, modificações modernas e insistência moderada; personagens capazes de render ápices marcantes e memoráveis dentro do que se propõem, mas sem encerrar o potencial do enredo em suas participações.
            O grande respeito de Moffat e Gatiss pela obra de Sir Arthur Conan Doyle o fizeram ser fiéis ao modo como o autor coloca Holmes no epicentro de duas forças emocionais extremas e poderosíssimas: um arqui-inimigo e um amor platônico que geram catarses extraordinárias mas não tomam o espaço do protagonista; inseridos e retirados nos momentos certos, nas medidas certas. Tudo isso faz de Sherlock uma ótima série para quem curte a obra original e deseja ter experiências visuais da saga do detetive mais tradicional da literatura. É claro, como haveria de ser, que não se trata de uma reprodução fiel dos acontecimentos criados por Conan Doyle, mas as boas referências nos fazem relembrar as histórias originais da saga com muito entusiasmo. E mesmo para quem não conhece a referência, e deseja algo novo para assistir sozinho ou acompanhado, vale muito a pena!



Professor de música, semioticista, crítico de cinema, comedor de cuscuz e ouvidor de baião.


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