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A ARCA DE NOÉ - Um filme bonito, do tamanho do sonho, mas é grande como a inspiração? A ver...


**Uma breve contextualização**

Em 1970, **Vinícius de Moraes** lançou o livro de poemas infantis **“A Arca de Noé”**, pela José Olympio Editora. Uma década mais tarde, 1980, mesmo ano de falecimento do poeta, um álbum homônimo foi lançado pela Polygram (atualmente Universal Music) com participação especial de 14 intérpretes brasileiros cantando versões musicadas de alguns dos poemas do livro (**Toquinho**, **Elis Regina**, **Chico Buarque**, **Milton Nascimento**, **Alceu Valença**, entre outros). Em 1982, saiu pela gravadora Ariola o LP sequencial, **“A Arca de Noé 2”**, com mais 13 poemas musicados e cantados por outro grupo de artistas consagrados (**Tom Jobim**, **Fagner**, **Elba Ramalho**, **Clara Nunes**, **Ney Matogrosso**, entre outros).

Nos idos de 2010, **Suzana de Moraes**, filha mais velha de **Vinícius**, procurou o cineasta **Walter Salles** para lhe dizer que tinha há tempos o sonho de ver a obra adaptada também para o cinema. **Salles** indicou o diretor baiano **Sérgio Machado** para conduzir o projeto, que desde o planejamento já se mostrava promissor. Em parceria com **Alois Di Leo**, **Sérgio Machado** deu início aos trabalhos de adaptação do roteiro e os primeiros esboços da animação, e assim começava a tomar forma o sonho da filha de **Moraes**. A ambição do projeto resultou em uma parceria com proporções jamais vistas entre estúdios do Brasil e da Índia para dar vida à superprodução animada de 01h35m com um resultado visual e sonoro que impressiona pela qualidade, que até agora não havia sido experimentada no cinema nacional.

Não poderia ser de outro modo, segundo o diretor em coletiva de 29 de outubro na **Mostra de Cinema de São Paulo**. Para ele, tudo o que **Vinícius** fazia tomava proporções extraordinárias, e “este filme também precisava ser”, disse. De fato, assim foi feito, e **“A Arca de Noé”** já pode ser considerado o mais audacioso e caro filme de animação brasileiro (orçado em US$ 6,3 milhões, aproximadamente R$ 35,8 milhões). Mas infelizmente, **Suzana**, que também era atriz e cineasta, faleceu em janeiro de 2015, aos 74 anos, sem conseguir ver a concretização da obra que tanto desejou. Em homenagem póstuma, o filme é dedicado a ela, que também dá nome a uma das personagens, e foi creditada como produtora do filme.

**Sobre o filme**



Na trama, **Tom** (**Marcelo Adnet**) e **Vini** (**Rodrigo Santoro**) são uma dupla de ratinhos compositores que ganham a vida com sua música (ou tentam). Um é músico instrumentista talentoso, o outro é poeta e letrista apaixonado — mais ou menos como a saudosa dupla à qual fazem alusão. Um dia, eles flagram o primeiro contato de **Deus** (**Seu Jorge**) com **Noé** (**Julio Andrade**), no momento em que o ancião é obrigado a construir a arca que abrigaria dois, apenas dois, animais de cada espécie, um macho e uma fêmea, por quarenta dias e quarenta noites, até que o dilúvio cesse e eles encontrem terra firme novamente para viver em paz e repovoar o mundo.

Desta vez, quem está no centro de interesse do enredo não é **Noé** e sua família, mas sim os animais. A notícia se espalha, os convites para o “cruzeiro” são distribuídos pelas andorinhas, comandadas por **Kilgore** (**Bruno Gagliasso**), e o reino animal se agita para conseguir as limitadíssimas vagas na embarcação. O leão **Baruk** (**Lázaro Ramos**) e sua corja de cobras e hienas conseguem surrupiar convites para a Arca, enquanto **Tom** e **Vini** tentam encontrar uma maneira de burlar as regras... Como é que os dois ratinhos machos farão para conseguir entrar na Arca? São muitas as tentativas, mas não é spoiler se eu disser desde já que eles conseguem. O primeiro é selecionado para fazer par com a ratinha **Nina** (**Alice Braga**), e o segundo descobre um jeito graças à astúcia da barata latina **Alfonso** (**Gregório Duvivier**), que é uma espécie de trapaceiro vendedor de oportunidades, e com ajuda do acaso, eles encontram uma entrada para o interior da nave de **Noé** após o percurso iniciado.

Após alguns dias de viagem, o ambiente começa a ficar pesado, quando os desígnios inescrupulosos de **Baruk** começam a aflorar, e o leão assume o posto de “líder” natural, autoritário e cruel, dos animais. Intimidação, ameaça, tortura e impostos elevados são apenas algumas das leis que passam a vigorar no novo sistema de governo da embarcação, enquanto **Noé** e sua família estão mais preocupados em encontrar terra firme, sem se ocupar muito dos conflitos animais.

**À guisa de crítica**

Quando se diz que o filme foi inspirado na obra de **Vinícius de Moraes**, não estamos falando somente de alusões genéricas ao conteúdo dos poemas do autor. Na realidade, todas as canções do filme são também retiradas quase que integralmente (com novos arranjos sob produção de **Schilling**) dos discos de 1980 e 1982, trazendo para dentro do filme os maiores clássicos que ouvimos na infância com as vozes do **MPB4**, **Elis Regina**, **Fagner**, **Alceu Valença**, **Toquinho**, etc. Canções nostálgicas como **“A Casa”**, **“O Leão”**, **“A Cachorrinha”**, **“A Corujinha”**, **“A Galinha D’Angola”** reaparecem no filme, e boa parte delas se destacam nas vozes de **Adnet** e **Santoro** (a propósito, muito boas), para encantar também as novas gerações — com o luxuoso auxílio das imagens que dão corpo e cor às personagens das letras.

Mas há outros elementos do conteúdo original que inspiram diretamente decisões estéticas do filme. Por exemplo, a princípio parece haver certo exagero no descaso com a estrutura de madeira, com pedaços que estão sempre prestes a desabar — e desabam mesmo. Isso porque o estado de fragilidade da nave não condiz com a solidez da construção de **Noé** que aparece em algumas dezenas de filmes e animações sobre o tema mundo a fora, que sempre reafirmam as garantias de integridade da população animal em mar aberto, já criteriosamente triados de dois em dois. E aqui no filme de **Sérgio Machado**, a embarcação tem um aspecto rústico e mal-acabado que nos faz questionar como é que ela não afunda nos primeiros minutos da chuva...

Mas a verdade é que não há nada a estranhar no aspecto desengonçado da Arca neste filme, porque **Vinícius de Moraes** já havia descrito a embarcação como “arca desconjuntada / parece que vai ruir / entre os pulos da bicharada / toda querendo sair”. Essa fidelidade permitiu trazer para o filme elementos de grande valor narrativo, como a escassez de alimentos que vai intensificando cada vez mais a impaciência dos bichos que querem logo sair da arca; e as disputas internas pelo controle das provisões e dos territórios, provocadas pela hierarquia natural dos animais, que tem o Leão no topo e os insetos e roedores na base. Ao mesmo tempo, a iminência de destruição da arca é, no filme, o único argumento de ponderação: se as brigas continuam, a situação da nave piora e todos podem morrer no mar. Daí que a solução é cantar em vez de guerrear.

Já se destacando como o maior filme de animação realizado no país (até agora), **“A Arca de Noé”** intensifica a presença do Brasil no mapa das superproduções animadas com conteúdo quase que inteiramente nacional (já que é inspirado na narrativa bíblica), sendo também pensado, escrito e dirigido por autores brasileiros. Claro, já temos no nosso repertório cinematográfico títulos animados de enorme relevância estética, como **Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll**, de **Otto Guerra** (2006), e os recentes **O menino e o mundo**, de **Alê Abreu** (2013), **Uma história de amor e fúria**, de **Luiz Bolognesi** (2013), e **Lino – uma aventura de sete vidas**, de **Rafael Ribas** (2017), todos premiados por sua alta qualidade. Mas **“A Arca de Noé”**, de **Sérgio Machado** e **Alois Di Leo**, é o primeiro realmente grande longa brasileiro do gênero, nas proporções que teremos oportunidade de assistir a partir de 07 de novembro nas salas de cinema do país.

E por isso mesmo... também não é de estranhar que ele traga consigo muitos dos

problemas que são próprios dos saltos mais ousados, galgando um novo patamar num ambiente muito pouco experimentado pelos realizadores nacionais. Estão presentes deslizes de roteiro que provocam incoerências, e inconfundíveis traços de pressa e pouco zelo em situações variadas durante o filme. Por exemplo, é o que ocorre quando é construída uma sequência de imagens em plano-detalhe de braços com pincéis riscando paredes, a indicar que os ratos estão pintando frases e desenhos de protesto contra o regime autoritário do Leão. O problema é que, depois disso, ninguém consegue enxergar o que é que afinal, foi escrito ou desenhado... tudo é muito disforme na imagem, e fica impossível entender, restando apenas aceitar a informação abstrata do protesto realizado. Essa falta de atenção a detalhes faz com que o filme seja, no geral, “bom”... com claros sinais de que poderia ter sido ótimo, com um pouco mais de cuidado e atenção.

Outro problema que a mim me parece difícil de engolir é o esforço desnecessário para incorporar expressões recentes na tentativa de se mostrar contemporâneo. São expressões que, de fato, integram o vocabulário dos jovens, mas não constituem nenhum elemento relevante no nível do discurso, e que não são atrativas, nem mesmo cômicas, para o filme... É o caso de comentários fracos e insossos como “é uma dancinha nova do tiktok?”. Isso poderia ter ficado de fora sem qualquer prejuízo, ao contrário, a presença de forçadas como essa mais contribuem para reduzir o potencial do filme.

Certo... gosto é gosto, e não julgo quem aprecie. Mas já aprendemos que elementos tão rasos podem trazer junto o risco de aproximar demais um “filme família” de um “besteirol família”. Esse não parece ser, nem de longe, o propósito de uma obra que se inspira em clássicos da literatura e da música nacional — que têm teor infantil na origem, sim, mas que absolutamente não se confundem com besteirol. Não é que haja exagero desses elementos no filme, mas fica o alerta.

**Um filme político**

Em 1968, quatro anos após o golpe militar, o então ditador brasileiro **Arthur da Costa e Silva** teria dito a **Mário Gibson Barbosa**, chefe do Itamaraty: “demita-se esse vagabundo”. O vagabundo da vez era **Vinícius de Moraes**, que exercia no ministério das relações exteriores o papel de diplomata em missões internacionais desde 1943. **Vinícius** era artista de sangue vermelho, conhecedor do Brasil e antifascista ferrenho. A dura ordem de exoneração não seria, portanto, inesperada. Considerado alcoólatra, boêmio, vagabundo e subversivo pelo regime militar, a demissão foi talvez uma consequência até leve demais para os padrões do autoritarismo brasileiro. Três décadas depois disso, em 1998 (dezoito anos após seu falecimento), **Vinícius** foi anistiado por **FHC**, e somente no ano de 2010 ele foi reintegrado simbolicamente ao corpo diplomático brasileiro para ser agraciado postumamente com o título de Ministro do Exterior pela Lei n. 12.265/2010.



É preciso que digamos isso para entender as razões de haver tantos elementos de crítica ao autoritarismo no filme. O regime violento do Leão não é inserido por acaso no longa, ele está aí para ser superado pela força das classes baixas, que juntas encontram na arte um modo de combater a injusta “lei do mais forte”, que ameaçava a sobrevivência de todos os animais ditos “fracos” e “insignificantes” no interior da arca (ratos, filhotes, insetos e que tais).

Não é para menos que os ratos precisem tentar insistentemente convencer o **Elefante** (**Marcelo Serrado**), o maior em tamanho e força, a se erguer contra a tirania de **Baruk**. Mas o elefante também representa o “neutro” que não se sente ameaçado enquanto não sentir as consequências na própria pele (“ele não mexe com a gente, a gente não mexe com ele”). Até que uma ocasião se apresenta, no auge dos desmandos de **Baruk**, e o elefante decide se mover. Isso não é senão uma referência ao famoso mote “o gigante acordou”, relembrando que somente o povo unido é capaz de derrubar governos autoritários.

Por fim, a frase **“ninguém solta a pata de ninguém”** é dita pelos animais quando todos precisam se proteger contra o naufrágio iminente, com as estruturas do navio prestes a ruir, em mais uma alusão a eventos recentes, como a união dos progressistas e da esquerda quando a extrema direita assumiu o poder em 2018, e que foi repetida em campanhas de solidariedade quando a pandemia de Covid-19 se instalou no país, e, junto com negacionismo, teorias conspiratórias, decisões políticas irresponsáveis e movimentos antivacina, provocou mais de 700 mil mortes entre 2020 e 2022 no Brasil. O filme recupera tudo isso em seu discurso.

**Um filme brasileiro**

No fim das contas, o filme é bom, e tem o enorme mérito de ser uma produção brasileira que não tem medo de ser destinada aos brasileiros (coisa que não vimos acontecer, por exemplo, em Lino, de Ribas, 2017). Embora haja versões dubladas do filme em 72 países, ele não esconde que não tem pretensão de universalidade expressiva, isto é, não minimiza, mas sim intensifica, a identidade brasileira (seja no que se refere às falas, aos ídolos internos, ou às formas linguísticas da oralidade). Isso se mostra com muita ênfase, por exemplo, na participação especial de **Chico César** como **Bode Severino**, personagem dita mais sábia do filme (mas que lamentavelmente só aparece uma vez). É o bonde que sugere o concurso musical como modo de resolver as diferenças entre os animais, em vez da carnificina.



Mas ele não “fala” simplesmente, na verdade, solta um repente carregado com o melhor sotaque nordestino — que, suspeito, só nordestinos brasileiros vão entender integralmente sem legendas —, propondo o embate. Isso talvez seja visto como ponto negativo, já que o cinema comercial foi se consolidando como uma linguagem do vococentrismo (diria Michel Chion), em que a voz seria sempre o centro, e sempre inteligível, para todos os públicos. Mas há entusiastas do realismo que aceitam pacificamente o sacrifício de uma parte da inteligibilidade em nome da integridade linguística do tipo representado, e até da verossimilhança sonora. Para o bem e para o mal, o fato é que o filme contempla essas variações, em maior ou menor medida, e nem todos entenderão o que diz o único nordestino do filme. Mas sempre há o recurso das legendas, não é? **Jean-Claude Bernadet** já disse que somos bons leitores de legendas, que assim seja. Quem achar ruim, que venha aprender nordestinês! De resto, não sobram elementos que se destinam ao público mais amplo, nos temas da revolução, da resistência, da cooperação, da justiça social, etc...

**Claro**, mas há sempre o argumento de que “Vinícius é universal” (vide matéria do Fantástico), pela amplitude de sua obra poética, musical, e até por sua atuação diplomática junto ao **Itamaraty** (entre 1943 e 1968), que ajudou a expandir sua presença internacional. Mas o fato é que o modo como a obra **“A Arca de Noé”** foi construída dá mostras inconfundíveis de que um audiovisual animado legitimamente brasileiro se projeta com força neste trabalho, para além da qualidade técnica, salta aos olhos e ouvidos um espírito de brasilidade que não se deixa ofuscar pelos recursos universais da linguagem que, evidentemente, também estão presentes no filme.

Mesmo com pequenas falhas, um filme de animação com essa magnitude é um passo importante que já devia ter sido dado há muito tempo, porque sempre tivemos realizadores e artistas do audiovisual de alto nível, e obras inspiradoras não faltam nas estantes brasileiras. O que faltava então? Investimento. Ser feito. Agora, não há mais volta, é seguir em frente, se quisermos manter o padrão. Um novo patamar técnico e artístico foi reivindicado pela indústria cinematográfica nacional com este filme. Mas o que dirá se temos condições de ir além é, mais uma vez, não apenas os elogios à qualidade do trabalho, mas principalmente, a adesão do público... O Brasil já aprendeu a gostar de filme brasileiro? Veremos.

**Mesmo com ressalvas, vale a pena assistir em família.** Alef James 3.5

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