MÁQUINAS MORTAIS | Vale a pena assistir? Resenha com Spoilers!

MÁQUINAS MORTAIS | Vale a pena assistir? Resenha com Spoilers!



A trama de Máquinas Mortais se passa em um futuro distante, aproximadamente no ano 3118,  em um ambiente de hostilidade constante que lembra muito cenários pós-apocalípticos como o da franquia Mad Max – exceto que ainda resta nas pessoas um senso de “civilização” consideravelmente maior, se é que podemos dizer assim –. Tal clima surge após o que ficou conhecido como “A Guerra dos Sessenta Minutos” que dizimou boa parte da humanidade com o uso de armas poderosíssimas.
Os que conseguiram sobreviver se reagruparam em cidades móveis que literalmente “caçam” e “engolem” umas as outras para absorverem seus recursos, tecnologias e mão-de-obra, e assim poderem se aprimorar (ou evoluir) cada vez mais. As “presas” conquistadas são completamente assimiladas e passam a integrar a população de seus predadores. Esse fenômeno social é conhecido como “Darwinismo Municipal”, e tudo se passa no grande “campo de caça” que compreende os territórios da Grã-Bretanha e Europa Continental.
No entanto, nem todos os agrupamentos urbanos são móveis e dispostos a compactuar com toda essa “selvageria”. Um enorme aglomerado de pessoas optou por permanecer estático e defender suas fronteiras como se fazia “antigamente”. Estes ficaram conhecidos como a “Anti-Traction League” (liga anti-tração) e se concentram em Shan Guo (mais ou menos o que restou da nossa China), que é protegida pela enorme Wall Shield.  
Londres é chefiada pelo Lord Mayor (uma espécie de prefeito) Magnus Crome (Patrick Malahide) e, sob suas ordens, Thaddeus Valentine (Hugo Weaving), é o “general” que conduz as explorações e caçadas. Chefe da Guilda dos Historiadores, Valentine é um homem ambicioso, temido e respeitado por todos que os cercam; cheio de segredos obscuros e objetivos latentes por baixo do olhar astuto e obstinado.
A metrópole retorna à Europa Continental em busca de caça. Magnus tem o objetivo manter Londres apenas como boa conquistadora que é, sem ter os olhos maior que o estômago. Mas Thaddeus secretamente reúne uma equipe de estudiosos das “Old Techs” em busca de recriar armas do passado e ir além do gato-e-rato diário. A ambição o faz desejar a dominação de Shan Guo e seus recursos. A fortaleza, claro, descobre os planos do inimigo e articula a defesa de sua muralha como pode. Nesse esquema narrativo de base caracterizado por ataque x defesa, a trama se desenvolve trazendo personagens e revelações inusitadas que enchem o longa de adrenalina e suspense.
O filme tem início com uma demonstração da insaciável fome londrina com a captura da pequena cidade mineradora de Salzhaken em uma perseguição pra lá de invocada. A cidade é literalmente engolida com sucesso, mas a refeição traz uma “indigestão” pior que buchada azeda, pois entre os moradores da pequena urbe se encontra Hester Shaw (Hera Hilmar), uma jovem misteriosa e disposta a ver Valentine morto. Ele escapa por pouco, graças a interferência de Tom Natsworthy (Robert Sheehan), um jovem apaixonado por história que trabalha procurando old techs para o Museu de Londres. Na confusão, Hester revela a Tom a face oculta de Valentine. A garota consegue fugir e Tom é atirado para fora de Londres pelo próprio Thaddeus ao descobrir que o garoto sabia demais. Começa então uma violenta luta pela sobrevivência acompanhada de muita adrenalina.
Hester e Tom precisam sobreviver ao campo de caça e encontrar refúgio, por sugestão do rapaz – ingênuo, coitado –, em alguma cidade mercadora. A ideia os faz alvos de caçadores, mas conseguem se “refugiar” em Scuttlebug. No entanto, são enganados e presos para serem vendidos como escravos. No confinamento, a garota revela que Valentine matou sua mãe, a famosa arqueóloga Pandora Shaw (Caren Pistorius) quando ela tinha apenas 8 anos. O motivo? Os dois trabalhavam juntos, até que encontraram um dispositivo que possibilitaria recriar “Medusa”, a máquina de guerra mais poderosa já conhecida. Pandora tentou dissuadir Valentine e ele a assassinou brutalmente na frente da própria filha. Hester escapa da cena bizarra com um cordão entregue por sua mãe e uma feia cicatriz no rosto feita por um golpe de Valentine.
Enquanto os pombinhos em potencial contam as horas numa cela nada higiênica, Thaddeus Valentine descobre que não é o único a desejar a morte da garota. Shrider (Stephen Lang), um ciborgue “ressuscitado”, também conhecido como Stalker, está confinado em uma prisão offshore e tem sede de vingança por conta de uma promessa quebrada de Hester. A criatura é libertada e sai em busca da jovem justiceira.
Pouco tempo antes de serem vendidos como escravos num leilão grotesco – à lá feira da Parangaba –, Tom e Hester são resgatados por Anna Fang (Jihae), uma assassina com a cabeça posta a prêmio nas grandes cidades. A gata de olhos puxados mata todo mundo, mas leva uma surra de Shrider que chega bem na hora pra botar boneco na brincadeira. Eles conseguem fugir num dirigível tosco e Fang se apresenta a Hester como amiga de sua mãe. Mas não é a única surpresa: Hester foi criada por Shride! – eu também pensei “arriégua!” nessa hora – e por isso conseguiu sobreviver tão jovem no campo de caça. O caveirão de metal pretendia transformá-la em ciborgue para livrá-la das dores do mundo – arriégua de novo! – , Hester concorda com sua decisão (eis a promessa), mas foge do abrigo quando descobre o paradeiro do assassino de sua mãe.
Fang os leva para Air Haven, uma cidade flutuante membro da Anti-Traction League, e lá precisam  se reunir com os aviadores para descobrir o que Valentine está tramando e como detê-lo. Acabam descobrindo, por puro acaso, que a maleta roubada de Pandora é na verdade um dispositivo que pode ativar a Medusa dar a seu dono o poder de instaurar o caos na terra – se ligou na analogia? –. Mas antes que pudessem bolar um plano, Shrider, a múmia de ferro ressentida, descobre sua localização e taca fogo em tudo para capturar Hester – curioso como uma cidade inteira pode vir a baixo num piscar de olhos se for construída de madeira e tecido e alguém brincar com faísca dentro dela –. No fim, a garota escapa de novo, seu pai adotivo é morto por um ferimento de Fang, mas antes de, literalmente, apagar os olhos, perdoa a promessa quebrada e devolve a Hester o medalhão que sua mãe lhe dera , também antes de morrer – esse negócio tá é com a mulesta –.
O grupo desembarca agora em Shan Guo, onde contam ao governador os planos de Valentine e a fortaleza coloca todos os canhões – que não são poucos – apontados para a cidade faminta que se aproxima velozmente de suas muralhas. Mas a Medusa é ativada e no primeiro disparo manda pro espaço uma parte da muralha gigantesca... É aí que percebem porque é que o brinquedo estava enterrado por tanto tempo e não deveria ser manipulado por qualquer um. Todo mundo se desespera e começam as preces pra tudo que é deus e santo. É nesse momento que, olhando para a imagem de medusa, que por alguma razão é um ídolo de orações em Shan Guo, Hester Shaw descobre que o amuleto – aquele amaldiçoado – é mais do que um mero souvenir de sua mãe. É a própria chave que desativa Medusa! e lhe foi entregue em segredo como um trunfo a ser usado algum dia caso o pior acontecesse.
Após mais dois disparos impiedosos contra a grande muralha, os mocinhos conseguem entrar em Londres e invadir a catedral de Saint Paul, onde a arma foi alocada, e com a ajuda de Katherine Valentine (Leila George), que é filha de Thaddeus, e Bevis Pod (Ronan Rafery), amigo de Tom, desativam Medusa e “freiam” Londres. Na investida, Thaddeus Valentine acaba sendo morto atropelado pela própria cidade móvel após cair com o dirigível, mas não antes de revelar a Hester o maior segredo de todos: é sua filha.
Christian Rivers (Minutes Past Midnight, 2016 e King Kong, 2005) é quem comanda a claquete na superprodução adaptada do livro de Philip Reeve, que traz o mesmo título, lançado em junho de 2018 pela editora americana HarperCollins. Não é muito comum que uma adaptação ocorra quase que simultaneamente à confecção da obra original, mas foi essa a aposta da Universal Pictures – não li o livro ainda, então só posso falar do filme –. Rivers é especialista em efeitos visuais e já demonstrou seu potencial anteriormente ao receber a estatueta dourada tão cobiçada por seu trabalho em King Kong (2005).
Como se não bastasse, o longa conta também com produção de Peter Jackson (O Senhor dos Anéis, 2001, 2002 e 2003), roteiro de Fran Walsh e Philippa Boyens (ambas assinam a franquia O Hobbit, 2012, 2013 e 2014) – Ôh povo pra gostar de Tolkien, Benzadeus! – e trilha sonora de Junkie XL (Batman vs Superman: dawn of justice, 2016 e Mad Max: fury road, 2015). Esse time constitui um o arranjo básico que deu origem ao longa, e em se tratando de uma promessa como essa, não poderíamos esperar nada inferior ao que já nos foi apresentado por eles nas telonas.


No mundo distópico criado por Philip Reeve, as “cidades predadoras” ilustram, com maravilhosos efeitos visuais, metáforas sociais presentes nas reflexões de diversos pensadores e críticos mundo à fora. Numa perspectiva semiótica, a obra ergue-se na oposição semântica  fundamental selvageria x civilização representada na obra por sociedades que se modernizam ao passo em que cultivam conflitos em busca de poder/alimento e findam por consumir e destruir umas às outras. Assim, a superprodução  explora uma dicotomia inerente à existência humana como conhecemos, que, num nível ainda mais abstrato de uma rede de relações semânticas, podemos identificar como natureza x cultura.
Esta relação é bastante comum entre os autores utopistas e distopistas que apostam na ficção científica para desenvolver suas ideias. Neste mesmo fulcro nasceram obras como Mad Max (filme de George Miller e Brendan McCarthy) que pende para um lado ainda mais selvagem da humanidade em um mundo pós-apocalíptico, e Admirável Mundo Novo (livro de Aldous Huxley), que no outro extremo traz uma sociedade pensada e, literalmente, fabricada, segundo ditames culturais em detrimento das manifestações “naturais” da humanidade.  

Na obra de Reeve, há um equilíbrio bastante satisfatório no que diz respeito às características de ambos os lados, a respeito do que se propõe. A natureza lhes dá necessidade, fome e desejo, e a cultura lhes fornece regras, estratégias e recursos. Mas como toda criação humana, a superprodução tem seus lados positivo e negativo... 
A produção está beirando o impecável. É um pouco estranho no primeiro momento ver duas cidades correndo por aí, sobretudo quando comparamos suas proporções, que faz com que Londres pareça enorme e grotesca e Salzhaken  minúscula e... também grotesca.  Contudo, com cenas de ação e deslocamento das grandes máquinas com um fino acabamento visual e sonoro, Rivers e XL caminham perfeitamente ao lado um do outro nos mostrando que são realmente os artistas por trás dos pulos de King Kong e da trilha sonora inteiramente em música espectral que surpreendeu o mundo em Mad Max. Mas o que dizer da condução dos acontecimentos no roteiro de Walsh e Boyens? Bom... ruim num é não, mas poderia ser melhor... Hugo Weaving (Elrong, em O Senhor dos Anéis) como Thaddeus Valentine não deixa a desejar em atuação e recebeu um dos personagens xodó dos roteiristas, pois é bem pensado, bem apresentado e caminha muito bem ao lado de Hester e Tom longo da trama, mas outros como Shrider (Stephen Lang) e Bevis Pod (Ronan Raftery) e Air Haven surgem e desaparecem no enredo com muito propósito e pouco investimento. Sobretudo o Stalker, que poderia ter feito mais estrago, dado o tamanho suspense por sua participação, mas aí nos resta aceitar que talvez seja esse o propósito dele conforme concebido por Reeve...
No mais, o filme não dá sono nem é “devagar”, se é esse o receio dos “amantes da sétima arte de todo o país” (vide Choque de Cultura). Ressalvas à parte, o investimento de duas horinhas vale a pena, sobretudo ao lado de pessoas que você gosta. Rende boas doses de suspense, humor e aventura, e você com toda certeza sairá do cinema refletindo muito sobre questões abstratas como a natureza e cultura dos homens e concretas como grandes eventos mundiais, desde os problemas diplomáticos entre Reino Unido e a União Europeia, a expansão ocidental mundo à fora, e a imposição do reino unido sobre o mercado chinês com a venda obrigatória de ópio por décadas à fio que dizimou tantas vidas a custo do vil metal, e ainda assim, os autores, ao final do filme, optam por Shan Guo receber os habitantes estrangeiros de braços abertos. Se haverá mais da franquia? Só digo é “tomara!”.



  1. FICHA TÉCNICA 
Título original: Mortal Engines
Distribuidor: UNIVERSAL PICTURES
Data de lançamento: 10 de janeiro de 2019 (2h 08min)
Direção: Christian Rivers
Elenco: Hera Hilmar, Robert Sheehan, Hugo Weaving
Gêneros: Ficção científica, Aventura, Ação
Nacionalidades: EUA, Nova Zelândia


Professor de música, semioticista, crítico de cinema, comedor de cuscuz e ouvidor de baião.

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